
Imagine-se acordando de manhã, espreguiçando-se e abrindo os olhos lentamente, deixando a claridade do sol inundar lentamente suas retinas. De repente você olha em volta e se vê num lugar estranho. A cama, a mobília, as janelas, nada lhe é familiar. Então você ouve conversas além daquelas paredes estranhas. Vagarosamente, um pouco perturbado você se levanta da cama, e vai à direção das vozes. Abre a porta e se depara com algumas pessoas. Elas lhe dão bom dia, com a maior naturalidade, até sorriem para você. Uma delas com uma voz amável olha para você e te chamando de um nome que você nunca ouviu, diz para se apressar senão você vai se atrasar. Se antes você se sentia um pouco perturbado, agora uma agonia que beira o desespero vai tomando conta de você. E então num ímpeto você fecha a porta, não vê as coisas pela frente, se sente confuso. Aí você fecha os olhos e faz força pra tentar lembrar o que aconteceu. Quem é você? De onde você veio? O que teria acontecido na noite anterior? E nada. Nada, essa é única palavra que faz sentido. Seria um sonho? Nem isso você sabe. Então, só lhe resta voltar para aquela cama de antes e ver se consegue acordar desse pesadelo.
Com esse exemplo acima, buscamos fazer com que todos se permitam refletir sobre a importância da memória para a constituição da nossa subjetividade e nesse texto equiparar, dentro de um panorama mais amplo, com a construção da memória coletiva. Em nosso cotidiano geralmente não percebemos o papel da memória na formação da nossa vida em sociedade e, como muitas outras coisas, só passamos a valorizá-la quando nos imaginamos sem.
Primeiramente nos cabe remontar a origem da palavra memória, que na mitologia vem da deusa grega Mnemosine, a mãe das musas que protege as artes e a História, era ela que proporcionava a transmissão dos conhecimentos do passado entre os mortais. Segundo a historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt, “a questão da memória impõe-se por ser a base da identidade, é pela memória que se chega à história local”.
Dessa maneira, cabe-nos ressaltar que a História é a ciência que tem no passado o seu aporte investigativo. Porém a História só se faz a partir da memória seja ela escrita, oral ou ainda, a partir da materialidade e dos “lugares de memória” (museus, monumentos, prédios etc.). Esses testemunhos do passado são a fonte, o material de trabalho do historiador. Mesmo as questões da atualidade só podem ser lidas numa teia mais ampla de análise crítica, e para isso as fontes históricas são fundamentais.
Falar em memória coletiva é falar de identidade social, afinal somos seres históricos. É o acumulo de referências de outras épocas que formam a estrutura da sociedade em que estamos inseridos. Somos constituídos no presente a partir da nossa ancestralidade. O patrimônio cultural de uma comunidade, diz respeito a tudo aquilo que a identifica com aquele espaço. A idéia de patrimônio cultural agrega desde prédios, ruas, praças e monumentos que dizem das modificações e sobreposições da formação da dinâmica urbana de uma comunidade, até aspectos antropológicos que dizem da formação de um grupo humano como a língua, os ritos, as crenças e os costumes.
Nos últimos tempos, com avanço tecnológico, a crise de paradigmas das ciências, o encurtamento das distâncias entre os paises e conseqüentemente entre as culturas, nós seres humanos, temos buscado dentro desse processo de intensas transições, referências que nos ajudem a reconstruir o caminho que nos trouxe até aqui. Na atualidade tudo muda o tempo todo. O que é hoje amanhã não é mais. É desse processo de consciência da transitoriedade da sociedade que tomamos consciência da nossa efemeridade enquanto sujeitos históricos e então adquirimos a noção de continuidade e perpetuação. É daí que provém a necessidade da preservação do patrimônio histórico e cultural e de políticas que contemplem essa necessidade.
Porém, vale destacar que uma política de preservação patrimonial acontece de forma democrática, com a participação de diversos segmentos de uma comunidade. Afinal essa política interfere diretamente sobre aquilo que deve ser preservado e consequentemente instituído como referência para a construção da história local. É preciso que todos se apropriem dessa discussão para que ela não represente apenas as ânsias de poucos e não contemple a diversidade. O patrimônio histórico e cultural é aquilo que nos dá unidade, enquanto homens e mulheres de uma determinada comunidade, mas não podemos esquecer que essa unidade é fruto das diferenças, sejam elas étnicas, ideológicas, de classe ou de gênero.
No momento em que Santo Ângelo avança na construção de uma política de preservação do seu patrimônio cultural, não podemos deixar de refletir sobre esse assunto. As manifestações artísticas, os traços arquitetônicos de nossos prédios e monumentos, os vestígios arqueológicos que remontam a trajetória dos nossos antepassados dizem da nossa identidade enquanto santo-angelenses. Conhecer o nosso passado é requisito para as ações no presente. É sabendo sobre como procederam aqueles que nos antecederam, nas mais diferentes situações, que agimos criticamente sobre o presente, espelhando-nos ou não em suas ações. Refletir sobre a memória é valorizar o passado e seus legados, é construir a história, e isso é um pressuposto básico para exercermos nossa cidadania.