quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Patrimônio e Memória: Por que preservar?

Mansão da Família "Manoel Agostinho Schorn". Localizava-se na esquina da Rua Antunes Ribas com a Três de Outubro, onde hoje existe o prédio do SESI. Do prédio original restou apenas a fotografia.


Imagine-se acordando de manhã, espreguiçando-se e abrindo os olhos lentamente, deixando a claridade do sol inundar lentamente suas retinas. De repente você olha em volta e se vê num lugar estranho. A cama, a mobília, as janelas, nada lhe é familiar. Então você ouve conversas além daquelas paredes estranhas. Vagarosamente, um pouco perturbado você se levanta da cama, e vai à direção das vozes. Abre a porta e se depara com algumas pessoas. Elas lhe dão bom dia, com a maior naturalidade, até sorriem para você. Uma delas com uma voz amável olha para você e te chamando de um nome que você nunca ouviu, diz para se apressar senão você vai se atrasar. Se antes você se sentia um pouco perturbado, agora uma agonia que beira o desespero vai tomando conta de você. E então num ímpeto você fecha a porta, não vê as coisas pela frente, se sente confuso. Aí você fecha os olhos e faz força pra tentar lembrar o que aconteceu. Quem é você? De onde você veio? O que teria acontecido na noite anterior? E nada. Nada, essa é única palavra que faz sentido. Seria um sonho? Nem isso você sabe. Então, só lhe resta voltar para aquela cama de antes e ver se consegue acordar desse pesadelo.

Com esse exemplo acima, buscamos fazer com que todos se permitam refletir sobre a importância da memória para a constituição da nossa subjetividade e nesse texto equiparar, dentro de um panorama mais amplo, com a construção da memória coletiva. Em nosso cotidiano geralmente não percebemos o papel da memória na formação da nossa vida em sociedade e, como muitas outras coisas, só passamos a valorizá-la quando nos imaginamos sem.

Primeiramente nos cabe remontar a origem da palavra memória, que na mitologia vem da deusa grega Mnemosine, a mãe das musas que protege as artes e a História, era ela que proporcionava a transmissão dos conhecimentos do passado entre os mortais. Segundo a historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt, “a questão da memória impõe-se por ser a base da identidade, é pela memória que se chega à história local”.

Dessa maneira, cabe-nos ressaltar que a História é a ciência que tem no passado o seu aporte investigativo. Porém a História só se faz a partir da memória seja ela escrita, oral ou ainda, a partir da materialidade e dos “lugares de memória” (museus, monumentos, prédios etc.). Esses testemunhos do passado são a fonte, o material de trabalho do historiador. Mesmo as questões da atualidade só podem ser lidas numa teia mais ampla de análise crítica, e para isso as fontes históricas são fundamentais.

Falar em memória coletiva é falar de identidade social, afinal somos seres históricos. É o acumulo de referências de outras épocas que formam a estrutura da sociedade em que estamos inseridos. Somos constituídos no presente a partir da nossa ancestralidade. O patrimônio cultural de uma comunidade, diz respeito a tudo aquilo que a identifica com aquele espaço. A idéia de patrimônio cultural agrega desde prédios, ruas, praças e monumentos que dizem das modificações e sobreposições da formação da dinâmica urbana de uma comunidade, até aspectos antropológicos que dizem da formação de um grupo humano como a língua, os ritos, as crenças e os costumes.

Nos últimos tempos, com avanço tecnológico, a crise de paradigmas das ciências, o encurtamento das distâncias entre os paises e conseqüentemente entre as culturas, nós seres humanos, temos buscado dentro desse processo de intensas transições, referências que nos ajudem a reconstruir o caminho que nos trouxe até aqui. Na atualidade tudo muda o tempo todo. O que é hoje amanhã não é mais. É desse processo de consciência da transitoriedade da sociedade que tomamos consciência da nossa efemeridade enquanto sujeitos históricos e então adquirimos a noção de continuidade e perpetuação. É daí que provém a necessidade da preservação do patrimônio histórico e cultural e de políticas que contemplem essa necessidade.

Porém, vale destacar que uma política de preservação patrimonial acontece de forma democrática, com a participação de diversos segmentos de uma comunidade. Afinal essa política interfere diretamente sobre aquilo que deve ser preservado e consequentemente instituído como referência para a construção da história local. É preciso que todos se apropriem dessa discussão para que ela não represente apenas as ânsias de poucos e não contemple a diversidade. O patrimônio histórico e cultural é aquilo que nos dá unidade, enquanto homens e mulheres de uma determinada comunidade, mas não podemos esquecer que essa unidade é fruto das diferenças, sejam elas étnicas, ideológicas, de classe ou de gênero.

No momento em que Santo Ângelo avança na construção de uma política de preservação do seu patrimônio cultural, não podemos deixar de refletir sobre esse assunto. As manifestações artísticas, os traços arquitetônicos de nossos prédios e monumentos, os vestígios arqueológicos que remontam a trajetória dos nossos antepassados dizem da nossa identidade enquanto santo-angelenses. Conhecer o nosso passado é requisito para as ações no presente. É sabendo sobre como procederam aqueles que nos antecederam, nas mais diferentes situações, que agimos criticamente sobre o presente, espelhando-nos ou não em suas ações. Refletir sobre a memória é valorizar o passado e seus legados, é construir a história, e isso é um pressuposto básico para exercermos nossa cidadania.


Darlan De M. Marchi

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Cine Apollo

Foto do prédio do Cine Apollo em 1927.


No Jornal da Comunidade Regional de 26 de setembro de 1991, o senhor Pacifico Berni Fiorenza, rememorava alguns acontecimentos em torno do primeiro cinema de Santo Ângelo. O Cine Apollo localizava-se na Rua Antunes Ribas, na quadra entre a Rua 25 de Julho e a Sete de Setembro. Através de suas palavras conseguimos nos reportar àquele período e remontar pela imaginação um pouco da atmosfera cultural e social da antiga Villa de Santo Ângelo. Segue abaixo o texto transcrito em sua totalidade:

“Cine Theatro Apollo

Se não me engano, era assim, com esta grafia, que seu nome estava escrito em grandes letras negras no cimo de sua fachada.
Sua frente, com mais sala de espera, bilheteria, escada de madeira para um acanhado 2º piso, onde estava instalada a cabine de filmagem, ladeada por dois camarotes de 2ª classe, era de alvenaria. O restante, sala de projeção (platéia) e palco eram de madeira. A tela cinematográfica era removível, assentada num plano mais elevado e o palco estava atrás dela. Nas laterais da platéia, estavam os camarotes de 1ª classe, os quais impediam que as fileiras de poltronas tivessem seu começo ou fim junto às paredes da sala. Por estarem eles, em plano superior a altura de uma pessoa de estatura mediana, mesmo assim, tinha que curvar-se um pouco. Mais tarde foram removidos, mas nos primeiros tempos, tiveram grande destaque, sendo um ou dois permanentemente destinado à rainha. As poltronas eram de madeira lustrada com acentos móveis, isto é, dobráveis quando desocupados. Haviam 2 ou 3 grandes ventiladores ao correr do meio do teto e 6 a 8 pequenos giratórios nas laterais. Fui bilheteiro e porteiro no então velho e saudoso Apollo.
A rainha era muito bonita, pertencia a família Biermann. Vestia-se refinamente e era motivo de entusiasmo e admiração vê-la passar com seu séqüito ou observá-la em seu camarote, muitas vezes acompanhada de seu namorado, o Neco na intimidade de seus familiares e amigos. Dificilmente faltava uma sessão cinematográfica e em cada parte existia um pequeno intervalo, ocasião para tornar-se a ver a soberana.
Ah!... O Cine Apollo!... Marcou época com sua pompa, sua rainha, seus filmes, seus espetáculos teatrais e seus mistérios. Quantas emoções foram ali despertadas?! Quantos namoros tiveram ali seu começo?! Em sua grande maioria ingênuos, infantis, adolescentes e até adultos maliciosos e por isto, entremeados de alguns pensamentos pecaminosos. Ir ao Apollo, era preencher parte do lado emotivo da vida.
Sua inauguração teria sido antes de 1930, lembro-me que os filmes na época chamados de fitas, que superlotavam era as de Tom Mix com seu cavalo ensinado Tony e sua eterna namorada Mary. Eram em branco e preto com cenas simples, despretensiosas e mudas, tendo legenda em português para entendimento dos diálogos, que em muitos filmes apareciam depois da cena, mesmo assim, os expectadores de deliciavam.
Mais adiante ainda na época do Tom Mix, foram aparecendo, Oto Gibson, Buck Jones, Tim Mac Coy, Willyam Desmond, Tom Tyller, representando enredos semelhantes, sem no entanto, empanar-lhe a imagem de astro preferido. Posteriormente, quando já se comentava que brevemente viria o cinema falado e se era corrido para cinema sonoro pelos mais atendidos, foram surgindo novos cow boys, que deram origem aos grandes Westerns com cenas mais arrojadas e enredos aprimorados, como Jornadas Heróicas, Duelo ao Sol, Bufallo Bill e tantos outros, encarnados pelos espetaculares astros Gary Cooper, Gregory Pech, John Barrimore, Henri Fonda, Tyrone Power. Neste mesmo tempo estavam despontando as fitas dramáticas, comédias, aventuras, espionagem, policiais, operetas, ficção cientifica e de horror. Recordando algumas, cito as seguintes: - Gavião do Mar, Pirata Negro, Estudante de Praga, Últimos dias de Pompéia, Ben Hur, Dama das Camélias, Ana Karenina, O pecado de Madelon Claudete, Diabo Branco, Conde de monte Cristo, Luzes da Cidade, Espiã 13, Mentiras da vida, Daqui a cem anos, Médico e o Monstro, Irmã Branca, As 4 penas, Horizonte Perdido, Fantasma da Ópera, Os Miseráveis, O Homem que ri, Corcunda de Notre Dame, Beau Gest, O Morro dos Ventos Uivantes, Patrulha da Madrugada, Zepellin, Desonrada, Os 3 Mosqueteiros, Drácula, Frankstein, Zubie Legião dos Mortos, Scherlock Holmes. Entre outros, foram filmes que marcaram época. As pessoas deixaram o cinema arrebatados pelo enrêdo, pela interpretação dos artistas e pela finalização, quase sempre feliz para os elementos de bom caráter (mocinho, mocinha e seus amigos).
Seguidamente troupes, mágicos e músicos apresentavam-se no teatro. Ribeiro Cancela chegou a se apresentar 2 vezes num mesmo ano com sua afamada companhia. Nele também se apresentou diversas vezes, o valoroso e admirado boxista, filho da terra, sr. Domingos Fortes (DOMINGÃO), demolindo em luta de boxe tantos quantos lhes desafiaram”.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O Tratado de Madrid e o fim dos Sete Povos

Alexandre Gusmão. Diplomata português, idealizador do Tratado de Madrid


O fator principal que ocasionou a decadência dos Sete Povos foi sua localização em uma zona de contestação entre Espanha e Portugal. O Tratado de Tordesilhas firmado em 1494, já não era respeitado a muito tempo, e a fundação da Colônia do Sacramento no atual Uruguai pelos portugueses impedia o avanço dos domínios espanhóis, sendo então cobiçada por esses, já que se localizava em um lugar estratégico que auxiliaria na implantação do monopólio comercial espanhol. Esse interesse por Sacramento deu origem ao Tratado de Madrid assinado entre Portugal e Espanha em 1750. Portugal abriria mão da Colônia de Sacramento em troca da região dos Sete Povos das Missões, que deveriam ser liberadas por seus habitantes que teriam de migrar para o lado do domínio espanhol.
Conforme as palavras de Maestri, o tratado ordenada que:

Das povoações ou aldeias que cede Sua Majestade Católica na margem oriental do rio Uruguai, sairão os missionários com todos os móveis e efeitos, levando consigo os índios para os aldear em outras terras de Espanha (…); entregar-se-ão as povoações à Coroa de Portugal, com todas as suas casas, igrejas e edifícios e a propriedade e posse do terreno (…)”.

Esse tratado desencadeou a resistência dos guarani dos Sete Povos que perderiam seu patrimônio, terras, estâncias e tudo aquilo que haviam construído. Essa resistência gerou a Guerra Guaranítica. O dois exércitos europeus se uniram contra os índios dos Sete Povos da Missões que lutaram em pequenas guerrilhas até 1756 contra os dois exércitos.
As tropas gerais missioneiras eram comandadas por Nicolau Neenguiru, corregedor de Concepción, na margem ocidental do Uruguai. Outras tropas por José Tiaraju – Sepé –, alferes real de São Miguel. Em 7 de fevereiro de 1756, Sepé foi morto m batalha, teria sido justiçado com um tiro de pistola, pelo próprio governador de Montevidéu, tendo dito antes da morte a célebre frase: “Esta terra tem dono”. Sepé Tiaraju tornou-se um mito, um mártir da causa missioneira, sendo aclamado até os dias atuais tendo sua imagem ligada aos movimentos sociais e de luta no Rio Grande do Sul.
O fim da Guerra aconteceu porém apenas em 10 de fevereiro, na Batalha de Caiboaté. Foi um banho de sangue onde os guarani missioneiros foram as vítimas frente ao poderoso armamento dos inimigos.Cerca de mil índios missioneiros foram executados. Em 16 de maio de 1756, após pequenos confrontos, as tropas ibéricas entraram em São Miguel. A República dos Sete Povos fora derrotada.
O Tratado de Madrid que de início parecia não interferir com os povoados do lado direito do rio Uruguai, foram afetados após a Guerra Guaranítica. Os jesuítas foram acusados de incitar os guarani à resitência e como punição foram expulsos dos Trinta Povos, ou seja do território dos três países. Com a expulsão dos jesuítas desses territórios, outras tentativas de reerguer as missões foram tomadas destinando para isso padres de outras ordens religiosas, mas que não lograram sucesso pois os poucos índios que restaram estavam dispersos e não aceitaram os novos missionários.
Segundo Maestri:

"(...) os missioneiros foram obrigados a adotar a língua e nomes portugueses, dissolvendo-se na população subalternizada do Rio Grande do Sul. Essa enorme contribuição ao povoamento original do Rio Grande é menosprezada pela historiografia tradicional rio-grandense.
Derrotados, milhares de missioneiros migraram para a Banda Oriental – Uruguai –, onde se empregaram nos campos, como peões, e em Montevidéu, como chacreiros, artífices, etc., guaranitizando profundamente aquela região".

Fonte: MAESTRI, Mário. Os Sete Povos Missioneiros: Das fazendas coletivas ao latifúndio pastoril rio-grandense. In: www.pfilosofia.pop.com.br


sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O gado e a erva-mate


Um dos atrativos aos bandeirantes na região missioneira do Alto Uruguai foi a introdução de gado em 1634. O gado introduzido pelos jesuítas em pequeno número, propagou-se nos currais e estâncias. Porém, os ataques dos bandeirantes fizeram com que os jesuítas resguardassem o gado em grandes campos e esconderijos naturais, chamados Vacarias. A primeira foi a Vacaria do Mar, ao sul do Rio Jacuí, onde o gado se desenvolveu e procriou durante os anos de abandono após o fim do primeiro ciclo missioneiro.

No início do século XVIII, dá-se início a Vacaria dos Pinhais, nos Altos do Planalto do rio Uruguai, onde os padres introduziram o gado em vastos campos protegidos por grandes matas de pinheiro impenetráveis. Durante o auge das reduções, essas vacarias tonaram-se estâncias, que se estendiam por milhas e onde o gado era criado a fim de abastecer o consumo de carne dos trinta povos.

Da mesma forma, ocorria com os ervais que eram cultivados pela comunidade a fim de abastecer as rações de erva-mate (Ilex Paraguariensis) nos povoados. O costume de beber o chimarrão, bebida que possuia ligação com os feiticeiros guarani, não conseguiu ser extinto pelos padres jesuítas. Assim, os missionários destinaram uma pequena ração diária da erva por família.

Conforme Buxel (1987:84-85) extensos ervais se estendiam ao longo dos domínios dos Sete Povos, muitos se localizavam a 500 ou 800 Km de distância o que tornava o trabalho dispendioso para os guarani missioneiros que colhiam a erva para a redução e também para a exportação, pois em Buenos Aires alguns artigos era comprados em troca da erva.

O hábito de tomar o chimarrão espalhou-se pela América Latina e ainda hoje no Rio Grande do Sul é um hábito amplamente cultivado.


Fonte:
BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos Guaranis. Porto Alegre: EST/Nova Dimensão, 2ª ed. 1987.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O dia-dia nas reduções


Os guarani das missões atribuíam uma enorme importância à religião católica e suas práticas, inicialmente era um fator externo, introduzido pelos jesuítas, mas com o tempo e as horas destinadas aos cultos, missas, sermões e catequese, os índios cederam às pregações e tornaram-se fiéis devotos do catolicismo. Dentre essas práticas destacavam-se o ensino religioso a todos os índios, principalmente às crianças, os cultos e missas diários, o esplendor dos trabalhos destinados a decoração das igrejas e a devoção dos índios ao receberem os sacramentos.
Quanto aos sacramentos, o matrimônio é que define o perfil da vida familiar guarani na redução. Os padres instituíram o casamento dentro de uma cultura que até então era poligâmica, que aceitava o divórcio e o infanticídio. Para pregar a moralidade sexual, os jesuítas implementaram o casamento precoce, a partir dos 15 anos para as moças e dos 17 anos para os rapazes. Matrimônios esses que se realizavam de forma coletiva com dezenas de casais na igreja da redução. Cada casal tinha em média de três a quatro filhos que eram orientados pelos padres nos colégios e nesses ficavam desde os sete anos, enquanto os pais trabalhavam nos diversos segmentos de atividades da comunidade.
Os padres precisavam alimentar os índios e sustentar a redução, havendo então a necessidade cada vez maior da expansão do trabalho e da diferenciação de serviços que viessem suprir as necessidades da comunidade. Nesse processo, o problema principal foi o costume do guarani pré-jesuítico com seu sistema tribal de doação e sua falta de interesse por tarefas repetitivas e cansativas. Por isso, era necessário estimulá-los a realizarem as tarefas diárias de formas diferentes, sendo a competição a mais utilizada, através de jogos, trabalho em equipe e campeonatos.
O sistema de propriedade na redução era coletiva. Cada indivíduo era dono apenas de seus objetos pessoais, fora isso até as ferramentas utilzadas no cultivo da terra era de ordem comunitária. Os indivíduos recebiam terras particulares para o sustento da família porém precisavam trabalhar nas terras coletivas para a manutenção da comunidade. Eram coletivos também os meios de transporte (barcos e carros de tração animal), as áreas de mato, as estâncias, os ervais e até as casas de moradia. Cada família diariamente recebia sua porção de erva-mate e carne que provinha das terras e campos coletivos. O senso de coletividade guarani impediu o desenvolvimento de uma civilização dentro do preceito capitalista europeu. Quanto ao comércio nas reduções Bruxel destaca:

"Dentro da mesma Redução, os índios particulares só podiam trocar entre si coisas dispensáveis e supérfluas, adquiridas por própria indústria ou doadas pela comunidade; não, porém, os bens necessários à vida e ao trabalho, fornecidos pela comunidade. (...) Quanto ao comércio entre duas Reduções será lícito dizer, de modo geral, que não havia comércio entre particulares, nem entre uma comunidade e particulares da outra. (...) mas o que escassava em uma redução podia abundar na outra. (...) No comércio com os espanhóis, todas as vendas e compras dos Trinta Povos eram, normalmente, feitas por meio dos Ofícios de Santa Fé e Buenos Aires, para onde desciam os barcos missioneiros após a colheita da erva-mate. O padre procurador de Ofício, missionário conhecedor de índios e Reduções, e interessado em tudo quanto lhes dizia respeio, procurava logo vender a bom preço os produtos indígenas, antes que o mercado se saturasse. Fazia igualmente as compras para cada Redução". (1987: 89-91)

Entre as regras da Companhia de Jesus estava a da fundação de um colégio primário junto a cada redução. Muito mais do que simples escola para que os índio aprendessem a ler e escrever, era preciso formar cristãos que também se tornassem lideranças frente à comunidade e auxiliassem na administração do povoado. Os padres de início ficaram responsáveis pela educação até a formação de mestres entre os indígenas. Nos povoados os dois idiomas, espanhol e guarani, foram instituídos como oficial. Os jesuítas tiveram que aprender o idioma para que fosse possível implementar seu projeto de conversão dos guarani. Muitas cartilhas, livros e catecismos foram traduzidos do espanhol para o guarani e impressos nas reduções.


Fonte: BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos Guaranis. Porto Alegre: EST/Nova Dimensão, 2ª ed. 1987.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Arte nas Missões

Imagem do Cristo Morto. Esculpida por artista guarani por meados do séc. XVIII. Encontra-se no interiro da Catedral Angelopolitana.


A arquitetura missioneira seguia o estilo barroco. Porém, possuia características próprias, principalmente no que se refere à estatuária. Segundo estudiosos, apesar de serem exímios imitadores, os guarani incluiram em suas imagens e esculturas características e feições próprias, por isso criou-se a denominação de arte barroco-missioneira para esse estilo desenvolvido nas reduções. Muitas esculturas tinham os pés, mãos e cabeças vindas da Europa as quais tinham o corpo com vestimentas celestiais esculpidas pelos artesões reduzidos. Muitos exemplares dessas obras resistiram ao tempo e ainda se conservam até os dias atuais. A arte visual não desenvolveu-se a um grau mais apurado porque não havia uma exigência por parte dos padres e dos guarani, pois essa arte assim como as demais modalidades desenvolvidas, cumpriam exclusivamente uma função catequética.
Conforme Bruxel, os jesuítas souberam utilizar esses dons artísticos dos guarani para a expansão do cristianismo e para isso desenvolveram as artes rítmicas:

"Como músicos e cantores, também os dançarinos indígenas não eram simples amadores, mas profissionais, com longos anos de exercícios diários. Começavam a dançar desde os seis ou sete anos. Em vez do trabalho na roça ou na oficina, tinham eles ensaio de canto, música e dança, por algumas horas diárias; aos domingos e festas ensaiavam também melodramas. Canto, música, dança e melodrama eram as principais diversões do povo nas muitas e grandes festividades. Os melodramas eram muitos e bem variados. Vibravam os guarani com as batalhas entre 'espanhóis e sarracenos', ou entre 'anjos e demônios'". (BRUXEL, 1987: 78)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O Traçado dos Povoados Missioneiros

Iconografia do traçado da Missão de São João Batista. Arquivo de Simancas, Espanha.

As reduções seguiam um plano urbanístico designado por lei variando em poucos detalhes entre uma e outra. O modelo padrão consistia em uma rua principal que dava acesso à Igreja que era o prédio mais importante de todo povoado. No centro ficava a praça onde ocorriam os desfiles militares, as encenações religiosas e as festas. Em torno da praça ficavam alinhados os blocos de casas dos índios de forma ordenada, o que permitia o crescimento planejado do povoado. Junto a Igreja ficavam os prédios utilizados pela comunidade. De um lado ficavam a casa dos padres, as oficinas e o colégio, todos com amplos espaços e grandes pátios internos. Do outro lado da igreja ficava o cemitério e o cotiguaçu, casa que abrigava os órfãos e as viúvas. Atrás da Igreja ficava a quinta dos padres onde eram cultivadas hortaliças e árvores frutíferas. Ainda, na periferia das reduções, encontravam-se fontes de água, olarias onde se fabricavam os tijolos de barro chamados adobe e as telhas que serviam para a construção das casas, além de cortumes, açúdes, capelas, estâncias e ervais. Segundo Bruxel (1987: 48-49) mesmo que ainda pouco desenvolvidas, existem pesquisas e achados arqueológicos que demonstram a existência de uma rede de esgoto e água que abastecia as reduções que chegaram a possuir cerca de 5 a 6 mil habitantes.

Nas construções, além do adobe, tijolo feito de barro sem a necessidade de queima, utilizaram amplamente a pedra itacuru que também servia de matéria-prima para a extração de ferro. Destaca-se na área da fundição de ferro a redução de São João Batista no atual município de Entre-Ijuís. A construção que possuia maiores detalhes e que exigia cuidados especiais na construção era a Igreja com adornos e talhas em arenito no seu exterior e um grande espaço interior onde encontravam-se grandes telas pintadas à óleo além de grandes altares e esculturas talhadas em madeira.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

O Segundo Ciclo Missioneiro

Ilustração do confronto entre índios e bandeirantes, do artista José de Miranda

A conquista e a colonização dos espanhóis na América estavam embasadas na evangelização e civilização, dentro do preceito europeu, prosseguindo a mesma idéia que motivou a luta contra os mouros durante a reconquista da Espanha, ou seja, estavam a serviço da Igreja e do rei da Espanha. Nesse sentido, os padres jesuítas fundaram as reduções modificando os valores morais e toda a estrutura política, social e econômica a qual essas etnias estavam acostumadas. Em vários lugares da atual América Latina, esse processo serviu para que os colonizadores espanhóis garantissem mão-de-obra obediente e barata.
A atuação dos jesuítas na América do Sul, mais precisamente na Província do Paraguai, que compreendia regiões do Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia, foi durante os primeiros contatos repelida pelos indígenas. E mais tarde, como já foi falado anteriormente, tiveram de adiar seus projetos devido à atuação das bandeiras paulistas.
O começo dos chamados Sete Povos das Missões, após os ataques do primeiro ciclo na região do atual Rio Grande do Sul, começa em nas duas últimas décadas do século XVII. Conforme Flores:

"A fundação da colônia do Santíssimo Sacramento no rio da Prata, em 1680, e as descidas constantes dos portugueses para o sul, em busca do gado e de comunicação com o seu entreposto comercial meridional, fez com que a política espanhola impelisse os jesuítas e catecúmenos guaranis a cruzarem novamente o rio Uruguai, fundando a redução de São Francisco de Borgia , em 1682, iniciando outra fase missioneira, que durou até 1768, sob a orientação da Companhia de Jesus". (FLORES, 1983: 22)

Com a fundação da redução de Santo Ângelo Custódio em 1707, elevaram-se a trinta o número de reduções e a sete o número de Povos no atual território brasileiro. Segundo alguns estudiosos as reduções eram Estados Teocráticos, ou seja, regidos pelo catolicismo independente do rei de Espanha, mas pelo contrário, todas as decisões políticas e econômicas dependiam da Coroa espanhola. Vários documentos comprovam a autoridade do rei sobre as missões: burocracias sobre as decisões políticas, leis, audiências e até tributos eram cobrados dos novos vassalos de Espanha. Além disso, os indígenas reduzidos prestavam um serviço fundamental, o de defesa da fronteira contra a expansão lusitana. “Portanto, a localização das Reduções não obedeceu a interesses políticos e nacionalistas, mas para a defesa das fronteiras”.( BRUXEL, 1987: 25)

Fonte:
BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos Guaranis. Porto Alegre: EST/Nova Dimensão, 2ª ed. 1987.
FLORES, Moacyr. Colonialismo e Missões Jesuíticas. Porto Alegre, EST/ Instituto de cultura Hispânica do Rio Grande do Sul, 1983.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Primeiro Ciclo Missioneiro



Quando do achamento do novo continente pelas duas potências ibéricas (Portugal e Espanha), uma nova discussão advinda agora de uma disputa entre os dois paises viria tornar-se imprescindível na implantação do projeto missionário e alteraria a fisionomia do espaço onde hoje é o Rio Grande do Sul: as questões fronteiriças, iniciadas com a assinatura do Tratado de Tordesilhas.

"Assim, durante todo o século XVI e parte do XVII, os espaços americanos, situados entre os dois impérios ibéricos, foram inicialmente “confins”, limites vagos de territórios subpovoados, mas onde as frentes de expansão, gradualmente, tendiam a se tocar, principalmente nos vales do rio Paraná e Uruguai, ultrapassando, algumas vezes o incerto meridiano de Tordesilhas. [...] se a geografia é condição básica para a fronteira, não constitui o seu essencial. A fronteira é mais do que um fato físico, ou natural. Ela o é também político, ou mesmo psicológico, ou cultural. E se desloca ao sabor dos processos históricos da colonização. [...] no vale do Rio Uruguai, a fronteira deslocou-se por diferentes paisagens geográficas, ao sabor das oposições de interesses representados pelos bandeirantes e jesuítas, sempre antagônicos". (KERN, 1982: 157)

Assim, após o tratado da-se início ao primeiro ciclo missioneiro. No atual território do Rio Grande do Sul, em 1626, começa a formar-se as reduções jesuíticas do Tape. Os guarani apresentavam o perfil psíco-social necessário para a vida em uma redução, conforme o projeto jesuítico. Eram horticultores, viviam em em comunidade e tinham um grande interesse pelas artes, porém alguns traços da cultura guarani impedia a cristianização desse povo, como os rituais de antropofagia, de bebedeiras, a poligamia e a falta de vontade para o trabalho. Conforme Arnaldo Bruxel:

"Tinha o guarani, em suma, muitas qualidades naturais favoráveis ao cristianismo, mas tinha também não poucas disposições que lhe eram adversas. As primeiras foram prudentemente aproveitadas; as últimas, paulatinamente corrigidas, com abnegada paciência e vigilância". (1987: 11)

Essa primeira fase ficou marcada pelo confronto entre os missionários e bandeirantes. Mesmo antes da fundação de reduções nesse território, esse confronto já acontecia nas regiões de Guairá e Itatim na margem esquerda do rio Paraná. A fundação de reduções na região do Tape foram estabelecidas devido a esses freqüentes ataques de bandeirantes paulistas em busca de mão-de-obra indígena. A região dos rios Paraná e Uruguai apresentavam as características necessárias para o desenvolvimento das reduções, com grandes campos, florestas e terras férteis. Porém, não conseguiram impedir os ataques dos bandeirantes paulistas. Inúmeras reduçoes foram fundadas mas não conseguiram manter-se devido as cruéis intervenções dos escravizadores de indígenas. Os padres só conseguiram lograr sucesso após o enfrentamento com os bandeirantes, onde destaca-se a Batalha de Mbororé, onde os guarani, sob comando jesuítico derrotaram a bandeira comandada por Jerônimo Pedroso de Barros. A partir desse instante, é que os jesuítas encontraram trégua para reestruturar seus projetos reducionais.
Fonte:
BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos Guaranis. Porto Alegre: EST/Nova Dimensão, 2ª ed. 1987.
KERN, Arno Álvares. Missões: Uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A Região Missioneira e os Primeiros Habitantes III


Ao observarmos mais a fundo a sociedade Guarani pré-colonial, precisamos levar em conta a religiosidade, suas crenças e rituais. Nesse sentido podemos destacar uma religião com fundamentos politeístas, com a crença em várias divindades protetoras, mas com a sobreposição de um deus superior, criador de todas as coisas. Acreditavam ainda na imortalidade da alma, e que esta após a morte alcançaria a felicidade em um mundo sobrenatural. O cacique poderia exercer o papel de curandeiro e guia religioso, porém essa função na maioria das aldeias era exercida pelos pajés, que:


"(...) orientavam os indivíduos nas doenças e males, buscando soluções no canto das aves, chupando os locais doloridos ou extraindo deles objetos simbolizadores do mal. Provavelmente também estavam ligados à perpetuação e reinterpretação dos mitos, nos quais se veiculavam as verdades fundamentais do seu modo de ser e de viver". (SCHMITZ, 1991: 297-298).

Verdades estas que não interessaram aos missionários jesuítas que desconsideraram e suprimiram os principais aspectos dessa religiosidade frente ao culto cristão. Sendo assim, o pajé se transformaria, mais tarde, em um inimigo do jesuíta, afinal ele retinha o controle espiritual e intelectual da tribo e lutava contra a instituição do novo culto pregado pelos europeus.

Em vários relatos dos primeiros missionários que adentraram essas matas, podemos observar alguns rituais Guarani que foram abolidos pelos jesuítas durante a aplicação do projeto reducional. Entre esses se destacam as danças e bebedeiras com intuito de invocar espíritos de antepassados, rituais de sepultamento, onde o morto era colocado dentro de um grande vasilhame cerâmico em posição fetal coberto por um vasilhame menor onde acreditavam que a alma ficaria depositada, até os rituais antropofágicos elaborados, considerados pelos padres como atos de extrema crueldade, e que na concepção guarani não eram nada mais do que momentos de festa em que exaltavam a bravura dos guerreiros.

Apesar de muitos desses costumes e crenças terem escandalizado os missionários jesuítas quando da implantação reducional, o processo de transculturação não conseguiu apagar por completo aspectos do modo de vida Guarani. A experiência missionária levou os padres a conservarem, mesmo que com adaptações, alguns pontos dessa cultura “pagã” a fim de alcançarem sucesso na conversão desses povos ao catolicismo.
Fonte:
SCHMITZ, Pedro Ignácio. Migrantes da Amazônia: a tradição Tupiguarani (p. 295-330) In Arqueologia Pré- histórica do Rio Grande do Sul. Org.Arno Kern. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A Região Missioneira e os Primeiros Habitantes II

Os Guarani da atualidade, no Museu das Missões em São Miguel das Missões.

O nível cultural dos Guarani se destaca segundo Dionísio Gonzáles Torres (1987: 11-14) não por grandes monumentos ou por escrituras, mas por aspectos culturais que deixaram benefícios a humanidade. Entre conhecimentos, estão como mais importantes a língua, que se difundiu e se mesclou ás línguas latinas da América do Sul, e também, as práticas agrícolas com o cultivo da mandioca, do tabaco, da erva mate, do milho entre outros, além da descoberta das propriedades medicinais de várias plantas nativas.

Quando os missionários da Companhia de Jesus e demais europeus chegaram nessa região não conseguiram compreender o nível cultural dos Guarani dentro do contexto natural em que estes estavam inseridos.
"Esta incompreensão gerou uma falsa idéia – historicamente consolidada – de que os Guarani não possuíam qualquer avaliação econômica, avaliação que marcou profundamente todo o processo histórico das chamadas Missões guarani-jesuíticas da região platina que permanece, de forma anacrônica, até a atualidade.[...] O estudo da Antropologia Econômica sobre sociedades autóctones cultivadoras e a Etnografia Guarani definem um modelo interpretativo confirmado pelos dados inferidos nas fontes documentais. Neste modelo, a familia extensa aparece como unidade de produção e consumo e a circulação econômica entendida como sendo guiada pela lógica da reciprocidade". (CATAFESTO, 2002:213)

Afirmando o que já foi dito acima, a produção econômica dos Guarani por ser baseada em clãs de parentesco com um senso básico de subsistência tinha o cultivo
"(...) feito com uma tecnologia primitiva [...] uma parte das colheitas era perecível e teria de ser consumida imediatamente, mas o milho, os feijões, a mandioca transformada em farinha ou beiju prestar-se-iam ao armazenamento.[...] as colheitas de que se fala não eram totalmente garantidas, pois estavam ameaçadas pela irregularidade climática da região [...] Parece que o Guarani racionalizava o uso da terra de modo a conseguir colheitas de produtos diferentes em diferentes estações do ano (...) ficando uma estação (inverno-começo da primavera?) pouco abastecida, em que recorriam à colheita de produtos do mato (...)". (SCHIMITZ, 1991:308-309)

Fontes:
SOUZA, José Otávio Catafesto de . O sistema econômico na sociedade Guarani Colonial. Horizontes Antropológicos, PPGAS- Porto Aleger, 2002.
SCHMITZ, Pedro Ignácio. Migrantes da Amazônia: a tradição Tupiguarani (p. 295-330) In Arqueologia Pré- histórica do Rio Grande do Sul. Org.Arno Kern. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991.
TORRES, Dionísio Gonzáles. Cultura Guarani. Assuncion – Paraguai, 1987.